Fazendo testes sobre a busca no Google para este site, para o qual utilizei meu nome como endereço digital, encontrei a seguinte imagem:

Estranha felicidade

Estranha felicidade

Fonte

Foi estranho.

Bem legal, mas é estranho perceber que alguém considerou um pensamento seu digno de ser aplicado numa imagem para ser compartilhada pela internet. Uma imagem com uma assinatura sua que, no site em questão, figura ao lado de outras assinaturas tais como Freud, Shakespeare, Einstein, entre outros autores comunzinhos, assim, como eu 😉

IMEDIATAMENTE lembrei do capítulo sobre Inadequação do livro As Consolações da Filosofia, de Alain de Botton. Mais especificamente, do trecho deste capítulo que refere-se à Inadequação Intelectual. O capítulo todo utiliza-se do pragmatismo do filósofo Michel de Montaigne, para propor algumas saídas para quem sente essa inadequação. Filósofo este com cujo ponto de vista me identifiquei prontamente.

Das minhas leituras recentes, foi dos trechos de livro que mais me marcou, porque fala de um tema com o qual tenho muitas dificuldades: Essência x Aparências.

O conhecido ditado popular “Santo de casa não faz milagre” aborda profundamente esta oposição entre aparências e essência.

Ele quer dizer que podemos ter, por exemplo, um ótimo profissional na família. Ou alguém que realmente poderia nos ajudar. Mas a proximidade, a convivência e a intimidade faz com que não confiemos na pessoa a ponto de usar seus serviços. E também, que a pessoa também nós vê com certa reserva e acaba não nos atendendo com o respeito e a consideração que esperamos.

A familiaridade encurta o respeito e rebaixa a autoridade. Marquês de Maricá – Político brasileiro

O santo de casa não faz milagre porque o conhecemos bem, sabemos que não é tão santo assim. Não faz milagre porque não nos parece santo, por mais santo que seja.

É um ditado que demonstra que, ao contrário do que o senso comum costuma alardar, a aparência é de longe muito mais importante do que a essência das coisas e pessoas. Se não for mais importante, é, ao menos tão fundamental quanto.

As observações dos autores e ditados abaixo confirmam:

Assim é, se lhe parece. Luigi Pirandello, escritor italiano.

À glória dos mais famosos se junta sempre um pouco da miopia de seus admiradores. Georg C. Lichtenberg

Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem. Millôr Fernandes

Não basta ser bom, é preciso parecer bom. Ditado popular

À mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer honesta. Ditado popular

Abaixo, reproduzo parte do trecho do livro As Consolações da Filosofia. Ele demonstra bem como um rótulo, isto é, uma dada aparência se fortalece na medida em que se distancia no tempo ou no espaço, e também, na medida em que usa de artifícios de distanciamento, como por exemplo, o que ocorre atualmente com a filosofia acadêmica, que usa do expediente de uma linguagem “difícil”, para se parecer superior. Como observa Will Durant:

Mas nós, os ‘modernos’, tornamo-nos tão acostumados à verbosidade empolada na filosofia que quando ela é apresentada sem verbiagem temos dificuldade em reconhecê-la.

O trecho abaixo explica, em suma, porque alguém distante, que não me conhece a não ser pela imagem que projeto através da minha presença online, considerou um comentário meu digno de ser aplicado em uma imagem para ser compartilhada nas redes sociais, de uma forma que certamente não faria se me conhecesse pessoalmente 🙂

Segue o trecho do livro. As citações todas são de Michel de Montaigne. Os colchetes são supressões que considerei irrelevantes:

Toda obra complexa nos oferece uma escolha: devemos, ou não, julgar o autor inepto por não ser claro ou devemos nos julgar estúpidos por não conseguirmos captar o que está acontecendo? Montaigne nos encorajou a responsabilizar o autor. É mais provável que um estilo incompreensível tenha resultado mais da preguiça do que da inteligência: um texto que se lê com facilidade raramente é escrito desta forma. Ou então a prosa mascara uma falta de conteúdo; ser ininteligível oferece uma proteção sem paralelo contra o fato de não se ter nada a dizer:

“A obscuridade é uma moeda que o erudito conjura para não revelar a vacuidade de seus estudos e que a estupidez humana está inclinada em aceitar como pagamento.”

Não há nenhuma razão para os filósofos usarem palavras que soariam deslocadas nas ruas e nos mercados:

“Assim como no vestir, a linguagem revela uma mente fútil que busca chamar a atenção para um estilo pessoal e incomum. Buscar novas expressões e palavras pouco conhecidas revela uma adolescente ambição livresca. Quem me dera limitar-me às palavras usadas em Les Halles*, em Paris.”

Mas escrever com simplicidade requer coragem, por existir o risco de ser menosprezado, considerado simplório pelos que insistem em acreditar que a prosa intragável é um sinal de inteligência. Tão forte é esta tendenciosidade que Montaigne perguntou-se se a maioria dos catedráticos teria respeitado Sócrates, um homem que reverenciavam acima de todos os outros, se ele os tivesse abordado em suas próprias cidades, sem o prestígio dos diálogos de Platão, em sua túnica suja, falando em uma linguagem simples:

“Os diálogos de Sócrates, que seus amigos legaram à posteridade, recebem nosso beneplácito apenas porque nos deixamos intimidar pela aprovação geral que receberam. Não usamos nossos próprios recursos intelectuais para julgá-los pois nunca fizeram parte de nossos hábitos. Se, na época em que vivemos, alguém viesse a produzir algo semelhante, poucos seriam aqueles que lhe reconheceriam o valor. Não somos capazes de apreciar virtudes que não são destacadas ou ampliadas por artifício. Virtudes estas que, rotuladas ou sob a capa de singeleza ou simplicidade, escapam com facilidade a um discernimento tão superficial quanto o nosso… Para nós, não seria a singeleza um parente próximo da simplicidade de espírito e uma qualidade digna de críticas? Sócrates possuía a mesma espontaneidade do homem comum: por conseguinte, falava como um camponês; falava como uma mulher… Suas induções e comparações baseavam-se nas atividades humanas mais comuns e mais conhecidas; todos eram capazes de compreendê-lo. Nos dias de hoje, nenhum de nós discerniria a nobreza e o esplendor de seus conceitos surpreendentes, expressos de forma tão simples; nós que julgamos inferior e banal o que não é revestido de erudição e que só percebemos a riqueza quando ela se faz acompanhar da pompa.”

É necessário e fundamental que se levem a sério os livros, mesmo quando seu conteúdo é claro e seu estilo atraente e, por extensão, não devemos nos deixar intimidar e nos considerar tolos se, devido a um rombo em nosso orçamento ou a uma lacuna em nossa instrução, nossas túnicas forem modestas e nosso vocabulário não for maior do que o de um barraqueiro de Les Halles*.

* Um antigo mercado público parisiense.

[…]

É tentador citar autores quando eles expressam exatamente o que pensamos com uma clareza e acuidade psicológica de que não somos capazes. Eles nos conhecem melhor do que nós próprios nos conhecemos e formulam de maneira elegante e sucinta ideias que para nós eram incipientes e conceitos que não conseguimos delinear, fazemos anotações nas margens e sublinhamos trechos que julgamos interessantes, demostrando onde encontramos um pouco de nós mesmos, uma ou duas frases da verdadeira essência da de nossas mentes – uma congruência que se torna ainda mais surpreendente se a obra foi escrita em uma era de togas e sacrifícios de animais. Convidamos estas palavras a entrar em nossos livros como uma homenagem àqueles que nos fazem lembrar quem somos.

Mas em vez de iluminar nossas experiências e nos conduzir em direção a nossas próprias descobertas, os grandes livros podem nos lançar em uma obscuridade problemática. […] Longe de expandir nossos horizontes, eles podem injustamente vir a delimitá-los. […] Mas, como Montaigne reconheceu, os grandes livros se calam diante de um número excessivo de temas. Se nós permitirmos que definam as fronteiras de nossa curiosidade, eles irão inibir nosso desenvolvimento intelectual.

[…]

[…] Agir de acordo com um verdadeiro espírito aristotélico, como Montaigne percebeu […] é saber divergir com inteligência até mesmo das autoridades (intelectuais) mais reconhecidas.

É, no entanto, compreensível que se prefira citar e comentar o que já foi dito a falar e pensar por si mesmo. Um comentário sobre um livro de alguém, embora tecnicamente trabalhoso, revelando horas de pesquisa e exegese, está isento dos cruéis ataques que podem recair sobre obras originais. Os comentaristas podem ser criticados por nao terem conseguido fazer justiça às idéias de grandes pensadores, mas não podem ser responsabilizados pelas próprias ideias – motivo pelo qual Montaigne incluiu tantas citações e comentários nos Ensaios:

“Às vezes recorro a outros autores para que digam o que não consigo expressar com a mesma propriedade devido às minhas deficiências de linguagem ou à minha pobreza intelectual… [e] às vezes… por temer o julgamento precipitado daqueles que não hesitam em atacar os escritos de qualquer tipo, especialmente aqueles cujos autores ainda vivem… Tenho de esconder minhas deficiências sob aqueles que alcançaram grande reputação.”

É surpreendente constatar que as chances de sermos levados a sério aumentam consideravelmente alguns séculos após a nossa morte. Declarações que poderiam ser aceitáveis quando se originam da pena de autores antigos correm o risco de atrair o o ridículo quando são expressas por contemporâneos. Os críticos não estão dispostos a se curvar perante as mais grandiosas declarações daqueles que dividiram com eles os bancos universitários. Não são esses os indivíduos que podem expressar opiniões como se fossem filósofos da antiguidade. “Ninguém escapa de pagar o ônus de ter nascido”, afirmou Sêneca, mas um homem que tivesse chegado à mesma conclusão em uma época mais recente não seria aconselhado a fazer semelhante declaração, a menos que manifestasse um  gosto especial pela humilhação. Montaigne, que não desejava ser humilhado, precaveu-se e, nas últimas páginas dos Ensaios, fez uma confissão referente a sua vulnerabilidade:

“Se eu tivesse tido confiança de fazer o que realmente queria, teria usado minhas próprias palavras, sem importar-me com as consequências.”

A insegurança de Montaigne originava-se da certeza de que suas ideias poderiam não receber de seus contemporâneos os mesmo tratamento e a mesma legitimidade que as de Sêneca e Platão:

“Meus conterrâneos da Gasconha acham estranho verem minhas ideias transformadas em livro. Sou mais valorizado à medida que minha fama ultrapassa cada vez mais as fronteiras do meu lugar de origem.”

No comportamento de sua família e da criadagem, os que o ouviam roncar ou trocavam-lhe a roupa de cama, nada havia da reverência de sua receptividade em Paris, e menos ainda postumamente:

“Mesmo que um homem venha a se tornar um portento aos olhos do mundo, sua esposa e seu camareiro continuarão a não perceber nada de extraordinário nele. Poucos homens foram maravilhas para suas famílias.”

Podemos dar a esta observação duas interpretações: ninguém é de fato maravilhoso, mas apenas sua família e sua criadagem são íntimos o suficiente para perceber esta verdade frustrante. Ou que muitas pessoas são interessantes, mas o fato de lhes sermos contemporâneos nos torna propensos a não levá-las tão a sério, por conta de uma curiosa tendenciosidade contra o que está ao alcance de nossa mão.

Montaigne não estava sendo auto-piedoso; em vez disso, estava usando a crítica a obras contemporâneas mais ambiciosas como um sintoma de um impulso deletério de se achar que a verdade tem sempre de ser encontrada longe de nós, em outro clima, em uma biblioteca antiga, nos livros de autores de épocas remotas. Trata-se de uma questão de se decidir se o acesso a coisas verdadeiramente valiosas está limitado a um punhado de gênios surgidos no período entre a construção do Paternon e o saque de Roma ou se, como Montaigne ousava propor, elas estão disponíveis também para você e para mim.

[…]

Trata-se de uma ideia difícil de ser aceita. Somos educados para associar a virtude à submissão a autoridades textuais, em vez de a uma investigação dos volumes que transcrevemos em nosso íntimo por nossos mecanismos de percepção. Montaigne tentou nos fazer recorrer a nós mesmos:

“Sabemos dizer “Foi Cícero quem disse isso”; “Este é o conceito de moral, segundo Platão”; “São estas as ipsissima verba [pelas mesmas palavras] de Aristóteles”. Mas o que nós temos a dizer? Que julgamentos fazemos? O que estamos fazendo? Um papagaio pode falar tão bem quanto nós.”

Repetir como papagaio não seria exatamente a maneira que um erudito usaria para descrever o que o leva a escrever um texto analítico. Uma gama de argumentações poderia mostrar o valor de se produzir uma exegese do pensamento moral de Platão ou da ética de Cícero. Montaigne enfatizou a covardia e o tédio de tal atividade. Obras secundárias requerem um talento menor (“A inventividade não se compara em importância à mera citação”), a dificuldade é técnica, uma questão de paciência e uma biblioteca silenciosa. Além do mais, muitos dos livros que a tradição acadêmica nos encoraja a citar como papagaios não são em si obras fascinantes. Eles receberam um lugar de destaque nos currículos universitários porque são obras de autores de prestígio, enquanto outros temas tão ou mais válidos ficam no ostracismo porque nenhuma autoridade intelectual se deu ao trabalho de elucidá-los. A relação da arte com a realidade sempre foi considerada um tema filosófico sério, em parte porque Platão foi o primeiro a levantá-lo; a relação da timidez com a aparência pessoal não é, em parte, porque não atraiu a atenção de nenhum filósofo da Antiguidade.

Com base neste respeito inusitado pela tradição, Montaigne julgou ser relevante admitir para seus leitores que, na realidade, ele achava que Platão poderia ser limitado e enfadonho:

“Será que a a liberdade da época em que vivemos irá perdoar o audacioso sacrilégio que cometo ao julgar maçantes [seus] Diálogos, que se arrastam e delimitam seu próprio tema e ao lamentar que um homem capaz de dizer coisas mais importantes tenha perdido tanto tempo com debates infindáveis e inúteis?”

Com relação a Cícero, não houve sequer necessidade de desculpar-se antes de atacar-lhe:

“Os trechos introdutórios, as definições, as subdivisões e etimologias consomem grande parte de sua obra… Se eu dedicar uma hora a sua leitura (o que é muito para mim) e em seguida tentar relembrar a essência do que li ou do que consegui apreender, na maioria das vezes nada me vem à mente.”

O fato de os eruditos dedicarem tanta atenção aos clássicos deriva-se, segundo Montaigne sugeriu, a um desejo nascido da vaidade de ser considerado inteligente por intermédio de sua associação com nomes de prestígio. Para o leitor comum, o resultado era uma avalanche de livros eruditos e insensatos:

Existem mais livros sobre livros do que sobre qualquer outro assunto: tudo que fazemos é glosar uns aos outros. Tudo não passa de uma enxurrada de comentários; de autores propriamente ditos, existe uma escassez absoluta.

Mas Montaigne insistia em afirmar que as ideias interessantes podem ser encontradas na vida de qualquer um. Por mais modesta que seja a nossa história, podemos extrair insights mais importantes de nós próprios do que de todos os livros de outrora:

“Se eu fosse um homem de grande erudição, encontraria o suficiente para tornar-me sábio em minha própria experiência. todo aquele que traz vivo na mente seu último acesso de fúria… percebe a fealdade deste sentimento melhor do que em Aristóteles.”

[…]

Somente uma cultura formal e intimidadora nos faz pensar de outra maneira:

“Cada um de nós é mais rico do que pensa.”

***

Desde a adolescência, tive dificuldade de lidar com uma sociedade que baseia suas relações em imagens forjadas. A maioria das pessoas com as quais lidamos se nos apresenta de um modo artificialmente construído, e esperam, e exigem, que também nós nos apresentemos a elas de modo superficialmente construído. Mesmo que na intimidade e no anonimato, sejamos outros; sejamos, na verdade, quem realmente somos.

A imagem com a qual as pessoas se apresentam para nós, é a imagem que convencionou-se ser IDEAL para apresentarem-se. A imagem que nós esperamos que elas exibam. Pessoas autênticas demais sempre causam estranhamento e são rotuladas de excêntricas. Mas no fim, estão sendo apenas mais elas mesmas. Nós é que nos normalizamos demais para sermos aceitos.

Marcas publicitárias trabalham muito em cima dessa questão de imagem. A partir do momento que uma marca consegue convencer-nos de sua qualidade, ela tem 90% do caminho em direção ao lucro garantido. A melhor esponja de aço? Bombril. O melhor sabão em pó? Omo. A melhor bebida refrescante? Coca-cola.

Podem até não ser tão boas. Pode haver algum concorrente até melhor. Mas não o conhecemos; acreditamos que essas marcas são as melhores. Há uma autoridade envolvendo seus nomes – que foi construída – que nos convence que são boas. Acreditamos que são, e é isso que importa.

Assim é, se lhe parece. Luigi Pirandello

Eis o porquê algumas marcas usam do recurso de associar seus produtos a nomes famosos. Fazem isso em anúncios publicitários escancarados, mas também chegam a DAR seus produtos para que os famosos usem. A mente comum vai pensar: “Se FULANO, que é FULANO, usa tal produto, é porque deve ser bom” ou “Se FULANO usa tal produto, vou usar também, para ficar parecido com ele e me destacar também”.

Da mesma forma funciona a imagem social, o marketing pessoal. Acreditamos que o sujeito é ético e boa gente, porque é só o que ele mostra. Acreditamos que é, e é isso que importa, mesmo apesar do sujeito eventualmente ser agressivo com seus próximos, ou corrupto ou pervertido na intimidade.

O que os olhos não vêem, o coração não sente.

O santo de casa, aquele que não faz milagre, não faz milagre porque o conhecemos. Nossos olhos o vêem, e vendo o quanto é humano, nosso coração desacredita de seu caráter milagreiro.